Os Banshees de Inisherin
Fim da amizade no meio do absurdo
Por Pedro Sales
Festival de Veneza 2022; Oscar 2023
Um certo dia, você acorda e, pronto para seguir a rotina, faz tudo o que lhe é habitual, inclusive falar com seu melhor amigo. O problema, no entanto, é que, aparentemente, do dia para a noite, a amizade acabou. Não houve brigas ou discussões, ele simplesmente decidiu que não quer mais ouvir suas “idiotices” e tampouco “jogar conversa fora”. Esse argumento, no mínimo curioso, é a base para a comédia dramática “Os Banshees de Inisherin”, dirigida pelo irlandês Martin McDonagh, de “Três Anúncios Para um Crime” (2017). Na pequena vila de Inisherin, Padráic Súillebháin (Colin Farrell) perde repentinamente a afeição de seu melhor amigo Colm Doherty (Brendan Gleeson). O primeiro personagem não consegue entender a mudança brusca e procura por respostas, enquanto o outro está disposto a enfrentar graves consequências caso o “ex-amigo” insista em reatar a amizade.
A regionalidade do longa é ímpar, pois se reveste não só na nacionalidade do elenco e da direção, mas em sua essência. O espírito irlandês, evocado nos copos de Guinness e no sotaque “fecking” característico, é ampliado no tom proposto ao filme. Além da clara simbiose entre a comédia e o drama, a obra é recheada do absurdismo, um estilo muito próprio da dramaturgia irlandesa. Martin McDonagh se apropria de elementos beckettianos para construir, logo nos minutos iniciais, o senso absurdista de desorientação. Dessa forma, as influências do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, conhecido pelo “Teatro do Absurdo”, são palpáveis e preservam o nacionalismo da obra. Em vez de esperar por um Godot que nunca chega, aqui, uma longa amizade se desvanece subitamente. Para continuar explorando os ecos literários do longa, não é exagero comparar também com a obra de Franz Kafka. Se em um livro do autor húngaro um homem é levado para um processo em que não sabe as circunstâncias ou sequer o crime, no filme, um homem enfrenta a rudeza inesperada de alguém que era seu melhor amigo.
“Os Banshees de Inisherin” realiza, portanto, um exercício contra a lógica. Os porquês não são devidamente respondidos, pelo contrário, a carga de confusão e surpresa são os guias da experiência e os grandes responsáveis pelo engajamento do público. Se por um lado as simples justificativas de Colm estão longe de serem convincentes, as diferenças entre os amigos são bastante evidentes, eles possuem mais características que os afastam um do outro do que as que aproximam. A inocência do personagem de Farrell é passível de pena dos demais habitantes da vila, os quais o consideram “lerdo”. Ao passo que o personagem de Gleeson é maduro e um músico prestigiado pelos locais. O conflito entre as personalidades é tangível quando, bêbados, ambos discutem o significado de legado. Para o ingênuo Padráic, é ser lembrado como uma boa pessoa, para Colm é deixar uma produção artística, no caso suas composições para violino. O contraste entre eles é ainda reforçado pelo design de produção, uma casa é cheia de cor, com paredes amarelas e uma decoração com quadros e máscaras. Na outra, paredes feitas de pedra, sem decoração alguma, a única vida é a mula de estimação que ocupa a sala com Pádraic. O contraponto entre o poético e o prosaico.
Martin McDonagh consegue estabelecer um controle tonal bem demarcado, o que não é fácil, principalmente quando a obra transita por diferentes gêneros. A tensão crescente das investidas de Padráic para reavivar a amizade lida com a recusa de Colm, o qual se prefere a autodestruição à amizade antiga. O filme carrega, então, essa alta dose de imprevisibilidade (é blefe ou ele terá coragem?). As dúvidas do espectador também pairam no elenco de apoio. Siobhán (Kerry Condon), irmã de Padráic, e Dominic (Barry Keoghan) tentam dissuadi-lo da insistência na amizade. Curiosamente, ao mesmo tempo que o público fica inquieto com as situações, existe bastante humor em “Os Banshees de Inisherin”. O texto é sempre afiado e se vale da repetição para reforçar o cômico, como com os donos do pub. Algumas situações arrancam risadas sem o menor esforço (a mentira na carruagem, a confissão para o padre). O mérito da direção reside na capacidade de dosar bem o drama do término com o humor dos diálogos. A excelente integração entre gêneros é o que faz dessa tragicomédia de humor ácido e, às vezes mórbido, uma experiência única.
A criação da aproximação com os personagens se dá por dois fatores: o microcosmo e as atuações. A repetição da rotina, dos caminhos, do trabalho — que é tocar gado — e das idas ao pub permitem uma imersão natural. O público assimila rapidamente como tudo aquilo funciona, a simplicidade da vida. Dessa forma, por conhecer o padrão de Inisherin e suas atividades, fica ainda mais palpável o incômodo de Padráic, que perde um aspecto basilar da sua rotina: a amizade. O trabalho de fotografia, assinado por Ben Davis, é primordial para a construção do microcosmo. A vastidão da paisagem irlandesa com planos gerais confirma o distanciamento da vila em relação ao restante do mundo (acontece uma guerra civil que não afeta ninguém). A aspereza natural — composta por gramas e pedras — e o isolamento se associam, ainda, ao relacionamento dos amigos. A câmera os enquadra por entre janelas, penetrando o íntimo, mas preservando a solidão. A atuação da dupla Farrell-Gleeson é intrigante logo de cara e cada um, de certa forma, gera identificação. Gleeson mantém uma feição de desdém com a aproximação de Padráic. Farrell, por sua vez, é ingênuo, engraçado e carente. Condon e Keoghan também têm seus momentos, uma conversa à beira do lago nunca foi tão graciosa.
“Os Banshees de Inisherin” é um filme comprometido com o inesperado e com o absurdo. A gradação da tensão, atrelada ao humor ácido, desempenha um papel crucial na manutenção do interesse do público. Além das grandes performances e da ambientação rica, o caráter do longa permite interpretações àqueles que as buscam. Uma possível leitura alegórica para o filme é a associação entre o fim da amizade com a guerra civil irlandesa que acontece ao longo da obra, do outro lado da ilha. Pessoas que estavam juntas há pouco tempo, por nenhum motivo sério, tornam-se inimigas, recorrendo a extremos para provar seus pontos. Mas o filme vai bem além disso, é um exame de como as amizades morrem e o tanto que o término pode impactar alguém, porém de forma engraçada, desconfortável e fascinante.